segunda-feira, 29 de junho de 2009

Amor via DDI


Dia 25 de maio de 2009 morreu o Michael Jackson. Nos jornais escritos e televisionados, apesar da turbulência política e muito mais relevante para a vida dos brasileiro, essa continua sendo a manchete principal.
Cada vez que abro as páginas (virtuais ou de papel) encontro declarações apaixonadas, demonstrações de extremo afeto, histeria dos fãs. Além, é claaaaaro, da família do Rei do Pop brigando pelo seu espólio.
Michael Jackson será eternamente lembrado pela estelar contribuição à música e à cultura mundial. Mas, ele era, essencialmente, sozinho.
Teve nove irmãos, e era sozinho. Foi criado pelos pais, e era sozinho. Teve o mundo aos seus pés, e era sozinho. Casou duas vezes, teve três filhos (ninguém sabe sob quais circunstâncias) e era sozinho.
E os fãs o amavam com veneração. Ídolo é um ótimo termo. Explica bem a relação entre ele e seus adoradores.
Mas, são amplamente conhecidas as inúmeras esquisitices e polêmicas que cercaram sua carreira meteórica e contrubuiram para a triste decadência do astro.
Então eu me pergunto: será que algum dos fãs mais ardorosos conseguiriam continuar nutrindo esse amor incondicional se tivessem a obrigação de conviver com o pop star?
É muito mais fácil amar via DDI.
Fiódor Dostoiévski, brilhante escritor russo, disse certa vez: "Tenho uma confissão a fazer... Jamais consegui entender como é possível amar o próximo. Em minha opinião as pessoas mais impossíveis de amar são justamente as mais próximas. As que realmente amamos estão distantes".
É muito mais fácil amar o astro pop, o artista de cinema, o músico, o cantor, com a mais profunda pureza do coração. É só colecionar discos, frases, fotos. Suspirar cada vez que o vê, imaginar-se junto ao seu objeto de paixão. É fácil.
Quem está longe torna-se uma criatura mítica perfeita, que não vai ao banheiro ou arrota. É cercado de uma dourada aura de perfeição. Essa aura enfraquece e desaparece com o veneno da intimidade.
Viver junto de alguém é conhecer a pessoa tão profundamente, que até os defeitos que a gente finge que não tem, consegue enxergar no próximo. Porque o próximo é muito próximo! O próximo dorme com você, trabalha com você, convive com você e é um espelho de você.
O próximo interage com você, algumas vezes subjugando você à sua vontade, outras vezes simlesmente ocupando um espaço. Ele realmente incomoda.
Quem está longe deixa saudades de sua presença perdida ou imaginada. As lembranças são coloridas, são divertidas. Imaginar-se junto de alguém que se ama é assim.
O maior desafio é entender o amor que se sente pelas pessoas próximas, pois elas não são perfeitas como o amor romântico deve ser. E os defeitos são muito decepcionantes. Porque todo mundo quer viver um amor de folhetim, ou ter uma família de comercial de margarina. Isso necessita muito esforço. Dos escritores e dos publicitários, porque na vida real, não existe nada disso.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Dedicatória


Estava repetindo o ato mais sem sentido que havia herdado de meu avô: molhar a ponta do lápis na língua. Já havia meia hora que pelejava pra começar a escrever a dedicatória nesse bendito cartão que iria junto com o presente de dia dos namorados.
Levantei para olhar a ponta da língua no espelho do banheiro. Estava preta de grafite.
Era melhor deixar para tentar denovo daqui a algum tempo, já que eu não estava tendo muito progresso com essa ingrata tarefa, que assusta os homens muito mais do que um arranhão gigantesco na pintura nova do seu carro.
Precisava aproveitar que hoje não havia ninguém aqui em casa pra me destrair. Era dia de Corpus Christi. É claro que não haviam conseguido me levar pra'quelas procissões, tapetes coloridos de sal etc. Nenhuma possibilidade de me ver na missa ajoelhado junto com as carolas.
Pois bem: a dedicatória.
Era uma sacanagem!! Pois eu já havia comprado o presente!!! Por que me fazer penar para escrever umas linhas em um cartão?!
Não tinha jeito. Vamos tentar novamente...
Voltei para o quarto onde o pacote vermelho me olhava perguntando: pode ser ou tá difícil?
Tá difícil.
Semana passada havia sido um tortura. Fui ao shopping duas vezes. A primeira para para observar enquanto Lili passeava borboleteando de loja em loja. Comecei a anotar mentalmente os diversos itens pelos quais ela se interessava: sapatos, agendas, perfumes, mais sapatos, uma blusa azul, uma blusa preta, uma blusa verde, um calça clara para combinar, um calça escura, livros, cd's... Quando cheguei no trigésimo sétimo item parei de anotar. Era mais fácil entrar aleatoriamente em uma loja e comprar qualquer coisa, pois ela iria trocar da mesma maneira. Por coincidência (ou não) estávamos no shopping justamente para trocar coisas que ela mesmo havia comprado. Se ela mesma conseguia não gostar de alguma coisa que comprou, como eu tinha a pretensão de conseguir que ela gostasse do meu presente? Logo eu, sutil como um borracheiro, que não entendia nada de moda, nem sabia sequer o tamanho do seu sapato.
Voltei depois ao shopping para comprar o tal presente de dia dos namorados. Esse mesmo que me encarava inquisidoramente, tendo pendurado derreado de lado um cartão, também vermelho, onde, supostamente, eu deveria "abrir meu coração" e demonstrar meu amor pela minha querida Lili.
Passei direto pelo quarto. Fui para a sala. Vou jogar um pouco de video-game para ver se surge alguma inspiração enquanto eu mato uns zumbis.
A duas semanas, aqui neste mesmo sofá, Lili veio, toda dengosa:
_ Doca, bebê, o que você vai querer de dia dos namorados?
_ Um cartão de memória novo para meu PS2 porque essa está cheio de slots queimados.
_ Você às vezes é tão sem graça...
Se levantou ofendida.
Mas era verdade! Era o que eu queria.
Era claro que não iria ganhar isso. Ganharia mais perfumes ou outra camisa listrada. Lili adorava me dar camisas listradas, não sei por quê.
Vou escrever logo a dedicatória e acabar com isso de uma vez!
Pequei meu lápis de volta. Acho que era a última pessoa do mundo que tinha um lápis. Esse lápis precisava de ponta. Então descobri que tinha um lápis, mas não tinha apontador.
Fui procurar o minúsculo quadradinho. Olhei em todas as gavetas da casa. Até naquela do aparador da sala, onde se encontra desde o carnê do IPTU até lixas de unha e pedaços melados de elástico velho.
Terminei fazendo a ponta com uma faca da cozinha. Imagina que beleza que ficou.
Era quase final da tarde quando venci mais esse desafio.
***
No dia seguinte, dia dos namorados, recebo, orgulhoso, meu pacote contendo uma linda camisa listrada de azul. Porém, surpresa das surpresas, também ganhei minha memória para PS2.
Lili me entregou seu cartão. Trinta centímetros de altura, escrito de alto a baixo com sua letra pequenininha. Um primor literário! Só comparável às cartas de amor trocadas entre Napoleão e Josephine.
Então entreguei, de peito estufado, meu pacote vermelho, com seu lindo cartão, também vermelho, onde se lia:
De: Doca
Para: Lili,
ao que acrescentei, maestralmente: Com amor. Feliz Dia dos Namorados.
Ela só faltou chorar. Não sei se foi de alegria...