terça-feira, 16 de junho de 2009

Dedicatória


Estava repetindo o ato mais sem sentido que havia herdado de meu avô: molhar a ponta do lápis na língua. Já havia meia hora que pelejava pra começar a escrever a dedicatória nesse bendito cartão que iria junto com o presente de dia dos namorados.
Levantei para olhar a ponta da língua no espelho do banheiro. Estava preta de grafite.
Era melhor deixar para tentar denovo daqui a algum tempo, já que eu não estava tendo muito progresso com essa ingrata tarefa, que assusta os homens muito mais do que um arranhão gigantesco na pintura nova do seu carro.
Precisava aproveitar que hoje não havia ninguém aqui em casa pra me destrair. Era dia de Corpus Christi. É claro que não haviam conseguido me levar pra'quelas procissões, tapetes coloridos de sal etc. Nenhuma possibilidade de me ver na missa ajoelhado junto com as carolas.
Pois bem: a dedicatória.
Era uma sacanagem!! Pois eu já havia comprado o presente!!! Por que me fazer penar para escrever umas linhas em um cartão?!
Não tinha jeito. Vamos tentar novamente...
Voltei para o quarto onde o pacote vermelho me olhava perguntando: pode ser ou tá difícil?
Tá difícil.
Semana passada havia sido um tortura. Fui ao shopping duas vezes. A primeira para para observar enquanto Lili passeava borboleteando de loja em loja. Comecei a anotar mentalmente os diversos itens pelos quais ela se interessava: sapatos, agendas, perfumes, mais sapatos, uma blusa azul, uma blusa preta, uma blusa verde, um calça clara para combinar, um calça escura, livros, cd's... Quando cheguei no trigésimo sétimo item parei de anotar. Era mais fácil entrar aleatoriamente em uma loja e comprar qualquer coisa, pois ela iria trocar da mesma maneira. Por coincidência (ou não) estávamos no shopping justamente para trocar coisas que ela mesmo havia comprado. Se ela mesma conseguia não gostar de alguma coisa que comprou, como eu tinha a pretensão de conseguir que ela gostasse do meu presente? Logo eu, sutil como um borracheiro, que não entendia nada de moda, nem sabia sequer o tamanho do seu sapato.
Voltei depois ao shopping para comprar o tal presente de dia dos namorados. Esse mesmo que me encarava inquisidoramente, tendo pendurado derreado de lado um cartão, também vermelho, onde, supostamente, eu deveria "abrir meu coração" e demonstrar meu amor pela minha querida Lili.
Passei direto pelo quarto. Fui para a sala. Vou jogar um pouco de video-game para ver se surge alguma inspiração enquanto eu mato uns zumbis.
A duas semanas, aqui neste mesmo sofá, Lili veio, toda dengosa:
_ Doca, bebê, o que você vai querer de dia dos namorados?
_ Um cartão de memória novo para meu PS2 porque essa está cheio de slots queimados.
_ Você às vezes é tão sem graça...
Se levantou ofendida.
Mas era verdade! Era o que eu queria.
Era claro que não iria ganhar isso. Ganharia mais perfumes ou outra camisa listrada. Lili adorava me dar camisas listradas, não sei por quê.
Vou escrever logo a dedicatória e acabar com isso de uma vez!
Pequei meu lápis de volta. Acho que era a última pessoa do mundo que tinha um lápis. Esse lápis precisava de ponta. Então descobri que tinha um lápis, mas não tinha apontador.
Fui procurar o minúsculo quadradinho. Olhei em todas as gavetas da casa. Até naquela do aparador da sala, onde se encontra desde o carnê do IPTU até lixas de unha e pedaços melados de elástico velho.
Terminei fazendo a ponta com uma faca da cozinha. Imagina que beleza que ficou.
Era quase final da tarde quando venci mais esse desafio.
***
No dia seguinte, dia dos namorados, recebo, orgulhoso, meu pacote contendo uma linda camisa listrada de azul. Porém, surpresa das surpresas, também ganhei minha memória para PS2.
Lili me entregou seu cartão. Trinta centímetros de altura, escrito de alto a baixo com sua letra pequenininha. Um primor literário! Só comparável às cartas de amor trocadas entre Napoleão e Josephine.
Então entreguei, de peito estufado, meu pacote vermelho, com seu lindo cartão, também vermelho, onde se lia:
De: Doca
Para: Lili,
ao que acrescentei, maestralmente: Com amor. Feliz Dia dos Namorados.
Ela só faltou chorar. Não sei se foi de alegria...

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