terça-feira, 1 de setembro de 2009

A Casca - Capítulo V: Imenso e Profundo


Os saltos de 7,5 cm ecoavam secos na calçada de cimento cinza, agudos no mármore, abafados no carpete, musicais na madeira, leves na granilina, mudos na grama.

Lucia virava o pescoço, conjunto de sete vértebras cervicais, sendo a primeira - a que configura a ligação da coluna vertebral à caixa craniana - Atlas, a única que não possui corpo vertebral, seguida da Axis e sua apófise projetada para cima. Através de seus dois globos gelatinosos, com aproximandamente 23,48 milímetros de diâmetro cada, circunferência de 75mm, 7,5g, iris azuis devido à conjunção genética de seus pais - ambos portadores de genes "aa", focalizou as imagens do abiente em sua retina, que enviou os impusos elétricos através do nervo ótico diretamente para seu cérebro.

Em seguida, através de novos impulsos elétricos os músculos zigomáticos maiores direito e esquerdo repuxaram os cantos da sua boca formando um sorriso convincente.

Tudo acontecia em menos de um segundo.

Incontáveis vezes esse conjunto de movimentos complexos e absurdamente simples era repetido durante um dia, durante uma semana, um ano. Durante toda a vida de um ser humano regular. Poucas pessoas tinham sequer a consciência deles. A maioria dos pensantes jamais se perguntou qual foi o momento na história da criação da vida neste planeta rochoso e minúsculo que determinou o sucesso de uma máquina tão perfeitamente ajustada como o corpo.

Lúcia sempre teve consciência de cada pequeno espasmo que as fibras estriadas de seus músculos manifestavam. Foi descobrindo as minúcias da capacidade de sua própria máquina antropomórfica desde a tenra infância. Observava as sensações e movimentos atenciosamente, tanto do seu corpo como das pessoas próximas. Isso lhe tomava um longo tempo e muita dedicação.

Até que um dia seus zelosos pai a levaram para uma consulta com o pediatra da família. Sua mãe tinha as pálpebras contraídas e úmidas, um tom avermelhado em volta dos olhos e do nariz. Vertia líquidos transparentes das narinas e dos dois olhos. Seu pai fazia movimentos secos e duros, os músculos todos muito contraídos durante a consulta.

O pediatra, um senhor de cabelos muito brancos, o alto da cabeça reflexivo pela falta de pêlos para cobrí-lo, abaixou-se ao nível dos olhos de Lucia, repuxando os lábios para o lado e mostrando as pequenas formações calcárias de dentro da boca.

- Oi Lucia, tudo bem? - Disse o médico.

- Tudo bem. - Lúcia respondeu, apertando a mão estendida do doutor com sua minúscula mão de criança.

O senhor calvo lhe fez algumas perguntas, avaliou seus reflexos, continuou com a anamnese por uma hora. Ao final da consulta, dirigiu-se aos pais de Lucia.

- Não há motivo para preocupação. Sua filha é absolutamente normal.

- Mas doutor, - A mãe de Lucia, ainda aflita, perguntou em seguida. - como o senhor explica a mudez, os episódios de ausência, a falta de interesse em outras crianças? Ela não é como os filhos das minhas amigas. Ela é... Diferente.

O pediatra, franzindo o cenho levemente, expôs suas concusões.

- Senhora Morgan, as pessoas são diferentes. Do ponto de vista clínico não existe nada de errado com ela. Sua saúde física e mental me parece ótima. É claro que pretendo fazer mais alguns exames, mas inicialmente não existe motivo para preocupação. - O senhor calvo sentou-se atrás de sua escrivaninha de madeira escura. - Quando conversamos por telefone desconfiei que ela poderia ser portadora da Desordem de Asperger, uma manifestação autista que se caracteriza pela baixa interação social, desenvolvimento de padrões repetitivos com relação ao seu comportamento, interesses e atividades, que porém, não gera atrasos clinicamente significativos no desenvolvimento cognitivo ou na inteligência. Muito pelo contrário. Alguns gênios, como Isaac Newton, Mozart e Albert Einstein podem ter sido portadores da mesma síndrome.

A tensão muscular do pai de Lúcia diminuiu e sua mãe deixou de verter os líquidos pelos olhos e nariz, apesar de continuar enxugando-os.

- O diagnóstico, porém, dessa desordem é subjetivo. Na verdade precisamos observar o comportamento da menina. Aconselho a promoverem acesso a cada atividade e a toda informação que ela tiver interesse. Isso pode ajudá-la a tornar-se um ser-humano perfeitamente normal. - Ao que emendou rapidamente. - Do ponto de vista social, pois como afirmei anteriormente, todos somos diferentes. É um erro supor que deve existir um padrão comportamental rígido. Desde que não se ultrapasse o espaço alheio, não creio que os comportamentos ditos "diferentes" devam ser coibidos.

Os pais de Lúcia, muito aliviados, apertaram as mãos do médico. Lucia observava seus movimentos precisos, o modo de ondular dos músculos das mãos enquanto o faziam.

Sua mãe, abaixando o rosto ao nível do seu, repetiu o gesto do médico e, contraindo os cantos da boca em direção às orelhas, mostrou os pequenos incisivos frontais.

Após um segundo de análise, Lúcia repetiu esse gesto.

A repercussão desse ato foi instantânea. Seus pais se abraçaram e sua mãe recomeçou a verter lágrimas profusas, porém a expressão era diferente. Antes, os olhos estavam comprimidos, rugas entre as sobrancelhas, agora continuava mostrando os dentes em um sorriso ainda mais escancarado.

Assim Lucia aprendeu que, para evitar novas visitas ao pediatra, preocupações sobre a sua saúde e dúvidas quanto ao seu desenvolvimento, deveria procurar imitar reações e expressões, aprendendo a hora certa de usá-las, pois sabia melhor do que seus pais ou o médico, como fazê-las parecerem genuínas.

Seu desenvolvimento continuou. As notas escolares sempre impecáveis. Lúcia aprendeu violino e piano, e tocava ambos como uma pequena virtuose. Se dedicou ao desenho também, preferindo registrar em carvão as nuances dos movimentos do corpo à qualquer objeto inanimado.

Na adolescência se interessou por descobrir mais sobre o funcionamento de seu corpo. Pedindo e ganhando inúmeros livros médicos, atlas do corpo humano, modelos anatomicamente corretos. Inicialmente, consultando um livro sobre psicologia, imaginou que tivesse descoberto corretamente a desordem que a afetava: sociopatia. Mas, tirando sua indiferença natural, não possuía mais nenhuma característica desse transtorno de personalidade, como o desrespeito às normas de conduta sociais, irresponsabilidade, impulsividade e falta de cuidado com sua segurança ou dos outros.

Aos poucos passou a julgar-se a si mesma como uma pessoa extremamente felizarda, por não ter a fraqueza de sucumbir às vontades e desejos comuns, por não sentir empatia por nada ou ninguém, por não se comover com as vontades dos outros. Isso era um trunfo. Algo que a ajudaria durante toda a sua vida a fazer somente aquilo que quisesse, sem sentir remorsos. Sabendo como funcionava a máquina humana estaria plenamente preparada para uma existência plena, sem desejos, sem alegrias, sem sofrimentos.

Sabendo que já estava decidida a muitos anos, desde sua infância remota, avisou aos pais que cursaria medicina. Entrou na faculdade com dezesseis anos incompletos.

***

Toda a certeza da estrutura sólida fundamentada na ausência de vontades, desejos, remorsos, tristezas, empatia, amor ou ódio havia sido abalada assim que o sonhos repetitivos com o Homem dos Olhos Velhos passaram a fazer parte da sua rotina.

Dali para a frente os acontecimentos que se sucederam trouxeram Lucia ao ponto onde existia insatisfação e desejo, antipatia e desgosto. Não mais poderia ignorar as pessoas em volta, agora que elas conheciam coisas que jamais deveriam ter sido expostas. Uma pequena rachadura na barragem autoportante deixou entrar a dúvida, a expectativa e o medo. Lucia estava, pela primeira vez, odiando.

O exercício da impassividade continuava eficiente, mas por dentro Lucia fervilhava como um gêiser.

Ela sabia que o Homem era como ela. Insensível, inabalável, indestrutível. Por isso precisava encontrá-lo imediatamente.

***

No canto do quarto frio existia uma pessoa de pé.

Lucia acordou, esbarrou em outra taça cristalina, que se desfez em milhares de fragmentos de vidro pelo chão. Acendeu seu abajour. Ela o viu. No canto, trajado inteiramente de preto estava o Homem.

Ele deu um passo para fora do canto, entrando no círculo de luz fraca que emanava de sob a cúpula da luminária.

Lucia permanecia imóvel, respirando calmamente. Sempre soubera controlar seus sinais vitais para evitar parecer ansiosa ou tensa.

Nos seus sonhos Lucia via o Homem com belos olhos azuis, sobrancelhas muito retas e negras, longos cílios. Muito parecido com ela mesma. Era ser alter-ego masculino. O Homem parado na penumbra do seu quarto não parecia em absoluto com o sonhado. A pele era branca como giz, sem nenhum vinco ou ruga. Inexpressivo e perfeito como uma figura de cera. Os olhos tinham esclerótidas avermelhadas, as íris eram escuras nas bordas e quase brancas perto da pupila contraída, dando intessidade e volume ao olhar. Era como encarar a imensidão do céu ou as profundezas do mar. Longos cílios contornavam esse olhos velhos e rasgados, encimados por sobrancelhas retas. Porém nenhum pêlo do Homem era preto. Seus cabelos, cílios e sobrancelhas eram loiros, muito claros, quase brancos. O Homem era albino.

A boca do Homem, de arco-do-cupido cheio e desenhado, tinha os cantos curvados para cima. Isto lhe dava um ar eternamente zombeteiro, mesmo quando parecia sério. Como agora

Os cabelos brancos estavam pentados para trás, de modo que Lucia não podia determinar seu comprimento. O Homem tinha as mãos nos bolsos de suas calças.

- Quem é você. - Lucia finalmente perguntou.

O homem começou a esboçar um sorriso, curvando ainda mais os lábios cheios e contraindo os olhos até quase fechá-los, milésimos de segundos antes de Lúcia formular a pergunta. Ele lhe respondeu.

- Eu sou o Colecionador.

- O que você quer?

O Homem sorriu. Encaminhou-se calmamente para a frente e sentou-se na beirada da cama de Lucia, inclinando-se para ela.

Lucia saiu de baixo dos lençóis ignorando o frio extremo do quarto, ignorando sua própria nudez, e sentou-se de frente para o Homem. Precisava olhá-lo de perto, tocá-lo e se assegurar de que ele era real.

O Homem deixou que ela estendesse os dedos frios e tocasse sua pele de cera. Lucia passou os dedos delicadamente pelos contornos da boca do Colecionador, que a abria levemente para aspirar o perfume da pele da mulher. Tocou os pêlos brancos da têmpora e da sobrancelha do Homem, que fechou os olhos intensos para que Lucia pudesse percorrer a ponta de seus cílios.

O Colecionador não se mexia, deixando que Lucia tivesse a liberdade de explorar seu rosto e se certificar da sua existência.

- Você era diferente no sonho. - Lucia disse, por fim.

- Era mesmo? - O Homem disse, abrindo lentamente os olhos e sorrindo.

- Não sei mais.

Agora era a vez do Colecionador se adiantar e estender a mão para tocar Lucia. Ela fechou os olhos para aproveitar o jogo de não saber onde ele a tocaria. Sentiu o roçar dos lábios do Homem nos seus próprios lábios e uma sucessão de sensações prazerosas em cada lugar que o Homem tocava com seus lábios. Como se sua pele tivesse sido removida, expondo os nervos, explodindo de gozo a cada toque do Homem. E ele somente roçava os lábios, sem encostá-los completamente. Lúcia ansiava pelo beijo. Se o mais leve toque provocava esse turbilhão de prazer, ela queria experimentar o contato intenso e avassalador dos seus lábios e sua língua. Talvez não conseguisse sobreviver a tanto prazer se fosse realmente tão maravilhoso como parecia.

Como se entendesse o que ela não lhe estava dizendo, o Colecionador trouxe o corpo delgado e simétrico da mulher e o pousou sobre suas pernas. Ela deitou a cabeça no seu ombro, olhando-o intensamente e abrindo a boca em espera.

Abaixou a cabeça. A luz avermelhada da luminária refletia por trás de seus cabelos formando uma aura escarlate na cabeça do Homem. Os olhos brilhavam mesmo no escuro.

- Você me decepcionou, Lucia...

O homem disse, em seguida pousou Lucia novamente em sua cama. Levantou-se e saiu pela porta do quarto.

Lucia, aflita, levantou-se saiu disparada, tal e qual acontecia em seu sonho. Porém, da mesma maneira o Homem havia desaparecido assim que cruzou a soleira da sua porta.

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