quinta-feira, 30 de julho de 2009

A Casca - Capítulo IV: Monalisa


A analista, apesar de seus tremendos esforços, não conseguia esconder a decepção e irritação. Completavam-se três meses de visitas semanais de uma hora e ainda não havia conseguido nenhum progresso. Nada.


Enquanto isso, Lúcia estava sentada na cadeira, costas retas, porém relaxada, como uma perfeita dama se sentaria diante de uma presença ilustre.


- Doutora Lúcia. - A analista disse depois de um suspiro. - Creio que já conversamos sobre a importância dessa nossa reunião, certo.


A analista explicava pausadamente como se estivesse se dirigindo a uma cirança extremamente imbecil.

Com um sorriso brando, o mesmo sorriso que ostentava durantes todas as seções anteriores, Lúcia respondeu afirmativamente com a cabeça.

Se projetando para a frente, frustrada, a analista continuou:


- Você entende que sem a minha aprovação jamais voltará a trabalhar? Que precisa que eu a considere sã para que possa operar novamente?


Ainda sorrindo, Lúcia abanou a cabeça. Esse mesmo script vinha sendo repetido nos últimos quinze minutos de sua hora de análise a pelo menos cinco sessões.

A analista começava a duvidar dos métodos aprendidos durante os anos de profissão. Principalmente o método freudiano, pois se esperasse que sua paciente falasse alguma coisa, ficariam as duas caladas durante uma hora, todas as semanas, até o fim de suas vidas.


- Bem, doutora, mais uma vez tenho de comunicar que nos encontraremos novamente na próxima semana. Você não tem condições de voltar ao hospital, e não terá condições de trabalhar até que se resolva o seu problema.


- Doutora, - Lúcia disse, com uma voz cheia e cristalina, ainda sorrindo - nós duas sabemos que o que a senhora chama de problema foi nada mais do que um grande mal-entendido.


Assutada pela colaboração de sua paciente mais difícil, apesar da hora de sessão estar quase acabando, a analista não se contém e responde:


- Mal entendido? A doutora tentou o suicídio!!!


Lúcia sorriu, pois divertia-se com a rasa compreensão de pessoas como a sua analista.


- Jamais tentaria me suicidar. Foi simplesmente um pequeno problema de dosagem. Acontece o tempo todo na mesa de operação. Confesso, no entanto, que jamais havia acontecido comigo.


- Então admite ter problemas com drogas? - a analista se agarrava desesperadamente a esse assunto, indo cada vez mais para a ponta de sua cadeira, com seus olhos vidrados, postos em Lúcia, esperando captar a reação de seus músculos.


- Admitiria se fosse o caso, mas não o é. - e olhando seu relógio de pulso - Veja só, nossa hora acabou.


Lúcia levantou-se, célere, e dirigiu-se à porta.


- Então novamente semana que vem, certo? Boa noite. - disse antes que a analista pudesse acrescentar algo, e saiu.


***


Sem o trabalho no hospital, Lúcia não sentia vontade de voltar ao Clube. Tentara duas vezes, mas além de não conseguir mais sentir a energia revigorante, mesmo com coquetéis de alucinógenos, também não voltara a ver o Homem de Olhos Velhos.

Nem mesmo em seu sonhos ele havia aparecido novamente.

Apesar de continuar fazendo o exercício de pensar nele e na floresta. O sonho em si não havia se repetido.


A vida ascética de Lúcia era regrada e quase monática. todas as suas atividades tinham hora e duração estabelecidas e jamais alteradas. A rotina era uma grande aliada, assim como a limpeza.

Apesar de nunca haver precisado se preocupar com dinheiro, a limpeza de sua casa era feita por ela mesma. Assim como passar roupa, e cuidar das unhas.

Tudo que pudesse ser feito sozinha, Lúcia faria.


Ao chegar de sua consulta, deixou a bolsa pendurada no cabide atrás da porta de seu quarto enquanto andava, mergulhada em seus prórpios pensamentos.


Às vezes chegava a pensar em como era peculiar que não conseguisse se comover com nada, ninguém. Esses meses de tratamento haviam sido interessantes, pois sabia que possuía uma capacidade analítica muito superior à de sua terapeuta.

Verificava pequenos tremores nas bochechas da analista a cada vez que entrava para mais uma consulta, certamente provocados pela ansiedade mal curada da médica. Os dedos eram deformados nas pontas, levemente curvos, com unhas arredondadas, sequela de alguma doença pulmonar, provavelmente tuberculose. O nariz da doutora tinha pequenas veias vermelhas e era inchado, certamente isso foi provocado pela ingestão sistemática de álcool.


Apesar de tudo, não comseguia se incomodar com os olhares de desprezo lançados pelo concierge de seu edifício, nem os de dúvida, curiosidade e certo medo dos outros médicos e residentes que a atenderam no hospital.

Durante sua internação, assim que tomou consciência de onde estava, adotou a postura de sorrir calmamente e agir normalmente. Como se fosse perfeitamente normal que estivesse amarrada à cama. Jamais expressou nenhuma queixa ou solicitação. Ficou três dias pacientemente deitada enquanto os médicos, seus colegas, entravam e saíam de seu quarto, sempre solícitos, sempre perguntando se estava tudo bem, se ela precisava conversar.

Quanto aos burburinhos e fofocas sussurrados alto o suficiente para que ela ouvisse, estes não haviam surtido nenhum efeito. As enfermeiras e estudantes de medicina, mesmo seus colegas médicos e seus superiores estavam um pouco decepcionados em não conseguirem saber nada a mais do que havia sido relatado pelos paramédicos.

Os relatos sobre a casa estranha, a enorme tatuagem nos braços e costas, tudo ía de encontro à imagem formada sobre a doutora Lúcia Morgan, sensata, cordial, simpática, sorridente, impecável, perfeita.


Lúcia chegou a pensar que e incomodaria caso algum dia a sua intimidade fosse tão abertamente exposta, mas isso não aconteceu. Nem mesmo saber que era apontada como um animal exótico abalou o seu modo blasè. A grande verdade era que mais tempo, menos tempo, surgiria outro boato, sobre que médico dormia com qual enfermeira, que iria afastar a estória de seu suposto suicídio da cabeça de seus colegas do hospital.


Enquanto isso, Lúcia esperava conseguir vencer a analista pelo cansaço, já que não pretendia falar absolutamente mais nada até o fim de seu tratamento ser decretado pela terapeuta.


Deitando-se em sua cama enorme, seus lençóis caros, edredon de penas. O ar condicionado baixava toda a temperatura da casa a um inverno glacial. Não tinha fome. Quase nunca tinha fome. A alimentação minimalista era outro de seus hábitos que poderiam chocar ainda mais sua terapeuta.

Fechando os olhos, deixou-se entregar ao grande prazer trazido pelo sono.

Pareceu apenas piscar os olhos, mas já era meio da madrugada, o quarto escuro como breu, quando os abriu novamente.

Seu estômago revirou quando setiu sua nuca arrepiando-se.

Foi com um misto de pavor e ansiedade que acendeu a luz do abajour, novamente derrucando uma taça de cristal no chão.

O barulho do vidro estilhaçando-se no mármore do piso a distraiu, mas quando olhou para o canto do quarto, ele estava lá. O Homem dos Olhos Velhos estava parado em seu quarto. fora de seus sonhos. Ela sabia a muito tempo que ele era real.

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