segunda-feira, 6 de julho de 2009

A Casca - Capítulo I: Como vidro.

As pequenas marcas de sangue fresco no chão denunciavam o acidente ocorrido nas primeiras horas da manhã. Lúcia estava no sentada na tampa do vaso sanitário tentando, com a luz dura e branca do banheiro, retirar o pequeno caco de vidro que se alojara no seu pé assim que ela o pousou, inadvertidadmente no chão do quarto.
Em algum momento esquecido durante a madrugada, ao tentar alcançar a mesa de cabeceira, ela havia derrubado a taça de vinho vazia no chão. Pela manhã, já esquecida, pisou nos cacos, ao levantar impulsivamente após os ruídos irritantes do despertador a acordarem.
Tinha perdido a consciência mesmo antes de dormir, devido à quantidade tóxica de vinho, tequila e tranquilizantes que havia ingerido. Resultado de sua comemoração por mais um ano de vida. Comemoração esta, que mais uma vez ela passava sozinha.
Agora, depois do vidro retirado da pele e do pequeno corte ter se estancado, Lúcia aproveitava a luz fluorescente e intensa para avaliar o quanto os trinta anos completos haviam modificado seu corpo. A pele muito branca e lisa do rosto era quase atemporal. Nenhuma mancha, ou marca. Os olhos, porém eram muito velhos, não que fossem enrugados, era a intensidade que lhes dava a aparência de pertencer a uma pessoa com milênios de experiência. Sempre haviam sido assim. Desde criança. Parecia que havia nascido mais velha do que seus avós.
Olhando dentro dos próprios olhos, Lúcia começou a relembrar o sonho que tivera na última noite, quando a primeira coisa que percebeu foram pares de olhos, azuis como os seus, velhos como os seus, com densas sobrancelhas retas e negras e enormes cílios. No sonho ela estava parada numa floresta verde, ainda podia sentir um vago cheiro de pinho, quando percebeu que alguém a observava. De repente ele estava lá, entre as árvores, fitando-a com seus olhos como os dela. Ela se dirigiu para o homem, que sorriu com desdém e virou as costas para ela. Tanto mais rápido andasse, mais ele se afastava, até que sumiu de vista, e ela correu e correu, angustiada procurando pelo homem, como se dele dependesse algo muito importante. Sentou-se no chão e começou a chorar. Foram seus soluços durante o sono que a acordaram e a fizeram derrubar a taça no chão.
Apesar do sonho, Lucia seguia seu ritual matinal para se preparar para mais um dia. Era segunda, o início da semana de trabalho. Trabalho era simplesmente a maneira de ter dinheiro. Não existia nenhuma conexão entre trabalho e prazer para ela. Todo o processo de banho, maquiagem, roupas e penteado era como se estivesse preparando um belo novilho para um sacrifício. Não que fosse feito sem paixão, mas não era com regozijo que o fazia.
Ao se olhar pela última vez no espelho, deparando-se novamente com seus próprios olhos azuis foi que se deu conta de que, quem quer que ela estivesse perseguindo no sonho, era exatamente seu par, seu gêmeo. Os olhos que vira no estranho homem, não eram outros senão seus próprios olhos. Paralelamente, ela estava procurando por ela mesma. Se sentiu satisfeita com esse pensamento. Não feliz, porque, sentindo-se extremamente bem-resolvida, não gostava da idéia de ainda precisar de algo que não tinha.
Lúcia sempre havia sido essencialmente sozinha. Apesar de estar sempre cercada de pessoas, desde muito cedo desenvolveu a particularidade de se bastar. Não havia sido amorosa com seus pais, apesar de não os destratar jamais, porém nunca havia se dado a beijos e abraços. Da mesma maneira, apesar de bela, nunca havia se permitido deixar-se levar por grandes paixões. Não foi assim com sua carreira, nem tão pouco com os homens. Seus relacionamentos sempre chegavam a um ponto crucial onde ela atestava sua incapacidade de amar o seu par e arranjava uma maneira delicada de terminar o relacionamento.
Uma das coisas que ela jamais permitia era que alguém começasse a invadir sua privacidade. Não tinha amigos, somente colegas. Sua casa era seu santuário e nunca convidava ninguém para visitá-la. Mesmo seus pais havia ido até lá umas duas vezes. Seu caos organizado nunca era mexido, e assim ela esperava que tudo continuasse eternamente.
Para evitar que até mesmo seu id fosse sequer imaginado pelas pessoas com quem mantinha relações casuais, tornava-se alguém completamente diferente no convívio social. A profundidade escura do poço que era seu eu era contrabalanceado por uma outra Lúcia, que era rasa, fútil e simpática com todos. Comprava sapatos compulsivamente e somente conversava futilidades com seus colegas. Era impossível que ela lhes desse alguma opinião sobre política, filosofia ou religião. Era impossível que deixasse criar alguma ligação de concordância ou discordância: não queria ter nada em comum com ninguém, amor ou ódio. Não queria ser definida por nenhum tipo de comparação.
As razões e sentimentos dos outros sempre foram transparentes à ela. Não se envolvia. Nem em relacionamentos amorosos. Dificilmente sentia empatia por algo, mas, com muitos anos de treinamento, aprendeu habilmente a simular tais sentimentos, e isso colaborava muito positivamente para sua profissão. Ela era médica.
Sua frieza e dureza, como o vidro, possibilitavam que fosse extremamente competente como cirurgiã. A precisão dos movimentos era mais facilmente alcançada quando não se deixava atingir por fatores externos. Essa era precisamente a principal característica de Lúcia.
Entretanto, sempre se imaginando como uma sólida montanha auto-portante, e conhecendo um pouco de pscologia, temia que o sonho traduzisse alguma necessidade latente. Isso a incomodava. Não se permitiria estar sujeita a algo externo para lhe completar. Nunca precisara disso. Mas se houvesse essa necessidade, fosse o que fosse, ela conseguiria. Havia conseguido tudo na vida, satisfeito todas as suas necessidades e jamais conhecera o gosto amargo de algum objetivo não ter sido alcançado.
De agora em diante iria procurar sanar esse incômodo que o sonho trouxera. Não por meio de profissionais como psiquiatras os psicólogos. Sendo como era, não confiaria sua intimidade a outra pessoa. Descobriria, de acordo com o grande conhecimento que tinha de si mesma, qual era a necessidade que havia se traduzido naquele sonho e iria satisfazê-la a qualquer custo.

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