terça-feira, 21 de julho de 2009

A Casca - Capítulo III: A Teoria do Contrário



Luzes e Som.

Luzes vermelhas, azuis e amarelas, piscantes, hipnóticas. Intensas, ofuscantes, pulsantes. Som ritmado. Uma espécie de música estranha. Techno, trance. Ópera. Sopranos coloratto atingindo notas impossíveis de serem percebidas pelo ouvido humano. Cristais se quebrando. Barulho de vozes, graves, agudas, roucas, calmas e urgentes. Todas cantando a mesma música, fazendo parte do mesmo compasso. E as luzes acompanhando o tempo forte da melodia.

Silêncio e escuridão.

O mais negro vazio e o silêncio mais ensurdecedor servindo de limite. Como uma enorme e definitiva morte de todas as coisas. A linha cinza. Ausência de tudo. Vácuo de ar, pensamentos, sonhos, átomos ou matéria. A caverna mais profunda, escura e esquecida do vasto infinito.

Novas luzes. Diferentes, frias e cadenciadas. Cercadas estranhamente de silêncio. Não o silêncio completo e profundo, mas um discreto burburinho. Zunido incessante e impossível de ser distinguido.

Então, por fim, um longo e escuro silêncio novamente.
Lúcia abriu seus grandes olhos azuis. Um pouco tonta e desnorteada. Tentava refazer mentalmente a conta de quanta cocaína havia ingerido acompanhada de tequila. Havia também bebido bourbon. Teria sido antes ou depois do ecstasy? Provavelmente depois. Depois de sair do clube. Depois de despir seu alter-ego Ray. Sua cama deveria estar coberta de garrafas, comida velha, papelotes. Livros. Cientologia, teoria da conspiração, culinária e é claro, medicina.

Não sabia que horas eram, tentou se virar na cama para olhar o rádio-relógio, relíquia que sobrevivia ao tempo dos celulares com despertador. Não conseguiu se virar e começou a ficar assustada, pois deveria estar em uma situação muito pior do que imaginava. Na manhã seguinte seu plantão começaria às 7h. Era imperativo que dormisse bem e estivesse desperta para prosseguir sua rotina. Assim que conseguisse se levantar iria pegar o frasco de fenobarbital, que certamente lhe garantiria mais umas 3 horas de sono. Lentamente, porém, o véu da confusão foi se afastando dos seus olhos e Lúcia percebeu um som familiar. Estranho ao seu quarto.

Bip... Bip... Bip... Familiar demais.
Abrindo mais ainda os olhos, que a essa altura ocupavam metade de seu rosto, Lúcia conseguiu distinguir na penumbra as cortinas verdes em volta da sua cama. O reconhecimento do ambiente não foi se infiltrando em sua mente devagar, caiu como um peso de chumbo no seu estômago. O bip, as cortinas, estar deitada rigidamente de costas, o frio limpo do ambiente. Ela estava no hospital. Quase certamente no mesmo hospital em que trabalhava.

Seus olhos, normalmente límpidos, estavam injetados de fúria muda. Movendo a cabeça ela conseguiu divisar os monitores de atividade cardíaca e pressão arterial. Um acesso estava espetado em seu braço, enquanto gotas gordas e cintilantes de soro caiam ritmicamente. Não estava conseguindo se mover pois estava amarrada à cama. Um imenso vazio na barriga. A compreensão de que todos que conhecia no hospital haviam rompido a muralha que separava sua vida pessoal. E provavelmente, quem havia aberto a primeira fissura havia sido ela mesma.

***

Os paramédicos haviam sido enviados a um elegante prédio numa das regiões mais ricas da cidade. O edifício tinha portas com puxadores de latão, eternamente polidos. Um elegante concierge atendeu ao grupo de dois homens e uma mulher, equipados com desfibriladores, maletas de medicamentos e talas, prontos para todo tipo de emergência.

_ Precisamos ter acesso ao apartamento da doutora Lúcia Morgan. _ disse o homem mais alto, dirigindo-se ao concierge.
_ Algum problema? _ este perguntou com a indiferença que lhe qualificava para esta profissão.
_ Esperamos que não. _ respondeu-lhe o segundo paramédico.

O esguio concierge, por trás de sua mesa, acionou o interfone e permaneceu praticamente parado por uns cinco minutos enquanto o aparelho tocava na cobertura sem ser respondido.
_ Parece que a senhorita Morgan não está em casa. _ falou, por fim.
_ Então precisamos que o senhor abra o apartamento para que nós possamos olhar. _ o primeiro paramédico retrucou.

Olhando para o grupo por uma última vez, o concierge chamou dois seguranças pelo rádio para completar a comitiva de seis pessoas que subiriam ao apartamento de cobertura. Por trás de sua fisionomia inalterada, estava muito irritado, pois jamais tivera de invadir assim a privacidade de um morador. Porém eram paramédicos que estavam em sua frente e havia uma enorme e vermelha ambulância com suas luzes piscantes, vermelhas e azuis, contudo a desagradável sirene estava desligada. Por experiência, pois já tivera a oportunidade duvidável de trabalhar em condomínios de novos-ricos, era melhor resolver assuntos ligados à ambulâncias, bombeiros e polícia o mais rápido possível.

Ao chegar à porta da cobertura, com a chave mestra abriu o apartamento, deixando os três paramédicos entrarem, seguidos dos dois seguranças, entrando também por fim. Aquele era o maior apartamento do edifício, possuindo um hall de entrada independente e chave de acesso para o elevador, o que queria dizer que nenhum outro morador do prédio poderia subir sem a presença do próprio dono da cobertura.

No instante que entraram todos se sentiram um pouco confusos. A decoração com lounge, duas salas divididas por um desnível, cortinas e venesianas nas janelas, até mesmo um piano de cauda, que era esperada em um apartamento tão grande não existia ali. A sala era um enorme espaço escuro, com chão de concreto vitrificado, janelas fechadas por persianas de ferro, luminárias fluorescentes em toda a área do teto e várias prateleiras de ferro nas paredes. Existia uma mesa de madeira escura no centro e era só. Milhares de livros, revistas e encadernações atulhavam as prateleiras de alto a baixo. Mas o mais perturbador era a quantidade de caixas de arquivo papelão, parecendo extremamente cheias, que se derramavam de algumas prateleiras, espalhando-se profusamente pelo chão e umas sobre as outras. Era inegável a sensação de se estar entrando em uma biblioteca esquecida, ou o depósito de documentos de uma velha fábrica, ou mesmo um repartição perdida no tempo, antes dos arquivos digitais.

A cozinha também era perturbadora. Desprovida de qualquer elemento que a tornasse mais humanizada, como flores ou quadros. Os armários, em todas as paredes e o balcão eram de aço inoxidável escovado. Um dos paramédicos, o mais baixo, abriu a geladeira, onde não havia nada. Nem mesmo garrafas de água.

O primeiro quarto onde entraram parecia normal até ter suas luzes acesas. Era muito frio. O motivo era o funcionamento de uma central de computadores. Existiam cinco máquinas ligadas, cada um com seu monitor LCD. Além de mais quatro monitores com imagens do resto da casa, ou seja, a casa era coberta por um sistema de câmeras. Enquanto a paramédica se impressionava com mais prateleiras, desta vez cobertas de cd's, uns dez mil títulos, como ela mentalmente calculava, o paramédico mais alto localizava no monitor das câmeras a imagem que os trouxera ali. Olhando no mapa lateral, que representava a planta da casa enorme, se dirigiram rapidamente ao cômodo de cima.

Lúcia estava deitada de bruços. A cabeça e o braço esquerdo pendurados para fora da cama king size. Garrafas derramadas no lençol branco. Embalagens de comida chinesa já vencida, papéis de chocolates, latas de cerveja.

_ Doutora Lúcia Morgan? _ a paramédica tentou, sua voz era pouco firme _ Senhora...?

Os seguranças olhavam um tanto assustados da porta do quarto. O concierge estava dentro do quarto junto com os paramédicos, porém não fez nenhum movimento para ajudá-los a mover Lúcia, somente abriu a boca de espanto ao notar a pele tatuada das costas e dos braços.

Mesmo os paramédicos estavam duvidosos que fosse realmente a doutora Lúcia Morgan, neurocirurgiã, competente, educada, alegre e polida, que recebia os casos de graves fraturas cranianas provenientes de colisões no trânsito, quando estava de plantão no hospital. Tinha sido o chefe da cirurgia que havia pedido a visita à casa da doutora quando esta perdera o plantão. Ele ficara muito preocupado, pois em cinco anos isto jamais ocorrera. A verdade é que tudo, desde suas roupas, seus modos, seus gestos, a maneira de falar o modo como executava suas operações, como jamais parecia esgotada, era tudo tão milimetricamente correto, que o chefe de cirurgia sempre desconfiara que havia algo errado com sua colega. Lucia jamais havia perdido um minuto sequer, nunca se atrasava. Não dava desculpas, não comentava da vida, marido ou filhos, não demonstrava gosto particular para música ou linha ideológica, ou política. Ela sempre tinha um sorriso na face que destoava dos olhos. O foco destes estava sempre muito além de qualquer lugar.

Lúcia foi virada de costas. Estava cianótica. Unhas e lábios azuis. Seus olhos estava abertos e vidrados e imediatamente os paramédicos iniciaram o processo de reanimação.

***

Ela já estivera ali antes. A muito, muito tempo atrás. Ou seria ainda a pouco? O familiar cheiro de resina de pinho. O barulho das folhas secas estalando sob seus passos. Essa luz suave, esverdeada, filtrada pela folhagem, que chegava lentamente ao seu rosto.

A copa das árvores era tão fechada que não se conseguia distinguir o disco solar. Não era possível se determinar a hora do dia, se era à tarde ou pela manhã.

Um sentimento de plenitude, de felicidade absoluta transbordava de seu peito àquela hora. Era maravilhoso olhar para a floresta silenciosa e perceber que era somente sua. Ninguém mais poderia devassar aquele lugar sagrado.

Porém, subitamente, o arrepio gelado na nuca denunciava que existia alguém estranho profanando seu templo. Lúcia corria os olhos pela clareira até enxergar dentre as árvores o homem dos olhos velhos.

Mas o homem não era um proscrito, profanador amaldiçoado, não. Ele era a encarnação da felicidade da floresta. Era o deus que concedia a graça de ser visto somente uma vez por quem tivesse a audácia de entrar nos seus domínios. Dele e não de Lúcia era a floresta.

Um imenso medo de ter cometido um erro atravessava Lúcia como um punhal. Ela precisava explicar-lhe tudo. Como ela também era uma deusa. Como ela também era dona da floresta. Como os dois precisavam estar juntos para preservar a unicidade daquele solo sagrado.

Antes que Lúcia abrisse a boca, o homem dos olhos velhos, gêmeos dos seus próprios olhos, sorria de lado, desdenhando do seu desespero e se voltava para desaparecer. Lúcia corria para ele. Era preciso alcançá-lo. Era preciso que ele entendesse que os dois eram metades de um todo. Ele não poderia partir!

Passando célere entre as árvores, gingando à direita e à esquerda, deviando de tocos e troncos como uma onça faria, Lúcia chegou a outra clareira, mas lá já não havia sinal do homem. Mais um vez ele se fora. A consciência de que isso já havia acontecido muitas e muitas vezes antes a assolou. Parecia estar se repetindo por milênios, desde a fundição da Terra, desde a explosão do universo. E seria repetido ainda infinitas vezes mais.

Ajoelhando-se no chão, Lúcia chorou. O choro sincero e sentido da derrota. Nenhuma perpectiva de futuro. A certeza de que continuaria procurando em vão pelo resto do Tempo pelo seu deus-par. O choro não secava e quanto mais era chorado, mais sentido e profundo se tornava. Lúcia sentiu que era a mãe de todos os rios do mundo. Mãe do oceano salgado de suas lágrimas.

Levantou seu rosto. Este estava molhado. Não só o rosto, mas todo o seu corpo e cabelo, como se tivesse emergido das águas neste instante. Porém estava ali, no centro da clareira, não havia mar ou rio, ou lago ou fonte. Ela estava só. Ela era só e seria só para sempre.

A luz tornou-se um pouco mais amarela e estranha. Foi se intensificando e se transformando numa luz intensa e vermelha, como uma fornalha. Depois rosa, lilás, então azul. Primeiro azul profundo, o que transformou o dia da floresta em noite, mas então empalideceu seu tom para um anil etéreo e suave. E ele estava ali novamente, na borda da clareira.

Desta vez ela não correu. Nem o chamou. Ele veio caminhando. Olhos velhos muito sérios. Lúcia se levantou, já sem nenhum vestígio do oceano de lágrimas. Ele parou de frente para ela e emanava calor morno. Segurou seu rosto delicadamente e se inclinou para beijá-la.
O universo explodia novamente dentro dela. Seu corpo concentrava o poder de todas as estrelas e pulsares. Sua mente era uma supernova, cada ponto da pele era um feixe de nervos. A sensação de êxtase era tão absoluta que não há como ser descrita. Era como se ela estivesse experimentando todos os orgasmos de todos os seres capazes de sentí-los de uma única vez em frações de segundos.

***

Silêncio.
Negro e profundo.
Em seguida a dor. Lancinante, excruciante. Dor completa. Maior do que ser rasgada em mil. Dor profunda que não só atingia sua carne, mas dilacerava o fundo de sua alma.

_ Ela está voltando! _ exclamou o paramédico mais alto.

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