quinta-feira, 9 de julho de 2009

A Casca - Capítulo II: Só




Outra manhã enevoada pelo espectro de um sonho indesejado.
Lucia novamente se olha no espelho com o semblante exasperado de quem tenta impor sua vontade a algo que não pode ser influenciado. Ou pior, quanto mais pensa em evitar o sonho, mais ele se torna recorrente. Isso ela já sabia, isso qualquer tolo sabe.


A duas semanas ela sonhava com o estranho e seus olhos antigos como os dela. Ele sempre desdenhava de sua incapacidade de alcançá-lo e sumia, deixando-a impotente e deseperada no chão de uma velha floresta densa e verde. Hoje à noite, porém, o sonho havia se modificado um tanto, pois ela, depois de se jogar ao chão e chorar, havia levantado os olhos e ele estava lá, ainda, olhando para Lúcia. Isso a assustou e a fez despertar. Na madrugada a impressão era de que o homem ainda estava no quarto, espiando-a. Com a sensação de ser observada, Lúcia estendeu o braço para a cabeceira e ligou a lâmpada do abajur. É claro que não havia ninguém no quarto, mas a sensação de vulnerabilidade, até então uma desconhecida, assombrou-a até a manhã.


Os episódios estavam tornando-se desagradáveis ao extremo. Primeiro por serem, na opinião da própria Lúcia, indícios de uma carência de algo indefinido, depois por estarem roubando um dos maiores prazeres para ela: a solidão.


Lúcia não era de se comparar com outros, nunca gostou da idéia de usar outra pessoa como parâmetro, mas certas coisas eram inevitáveis. Uma delas foi a constatação de que a grande maioria dos seres humanos tinha uma desesperada nececidade de pertencer a um grupo. Outra delas foi a constatação que a minoria de seres humanos que não pertencia a grupo nenhum era extremamente infeliz justamente por isso.


Para ela existiam prazeres supremos que somente eram conseguidos sozinha. Dormir era feito sozinha. Por mais que existisse uma outra pessoa dividindo a cama consigo, dormir mesmo só poderia ser feito só, não existia como dormir junto, assim como não existia como sonhar junto. Cada uma sonha seu sonho e era irônico que isso estivesse sendo um problema para ela agora.


Outro grande prazer solitário era ler. Não se lê junto. A leitura é uma experiência íntima e pessoal. Cada um extrai das letras sensações particulares. Cada um saboreia o livro com gostos diferentes. Não é algo que possa ser feito em conjunto.


Por fim o sexo. Em tese é algo que precisa de duas pessoas, porém, mesmo no sexo, Lúcia nunca havia encontrado um parceiro, por mais habilidoso que este fosse, que conseguisse satisfazê-la tão completamente como ela mesma se satisfazia. Ela se conhecia muito bem e somado a isso havia a sua propensão a não deixar que mais ninguém a conhecesse. Por mais que tivesse experimentado relações muito prazerosas, ela se bastava. Até para isso.


Mas agora algumas coisas eram diferentes. Seu precioso tempo consigo estava sendo estragado por um pensamento obsessivo sobre a necessidade que lhe perturbava o sono. durante seu tempo acordada a vontade de não voltar a sonhar com o homem dos velhos olhos era constante. Isso culminava com mais uma longa noite chorando por ele.


Mas o que ele poderia lhe dar para lhe saciar a angústia, que a sufocava quase toda noite, Lúcia ainda não sabia. Sabia somente que era urgente conhecer esse vão oculto de sua alma. Sabia que continuar necessitando de algo lhe era uma coisa inteiramente nova e que não tinha espaço em sua vida perfeitamente arrumada.


Seguiu para o hospital, para mais um plantão. As luzes frias refletidas nas paredes muito limpas, esverdeadas, poderiam não ser convidativas para a grande maioria dos frequentadores, mas Lícia gostava do contraste entre essa luz e o sangue ora vermelho, ora quase negro, sendo vertido pelos cortes de suas operações. É claro que não era algo a ser comentado. Com ninguém. Mais um dos prazeres que deveria ser degustado a sós.


As horas do plantão seguiram rapidamente, pois a maioria dos atos era tomado com velocidade e executado com precisão. Essa rotina não a cansava. Na verdade, exercer uma profissão onde suas qualidades peculiares como frieza e impenetrabilidade eram positivas fazia com que ela saísse revigorada no final de seus turno. É claro que Lúcia, com a vasta experiência de anos interpretando um modelo mais aceito pela sociedade, sabia que deveria aparentar um grande cansaço e frustração, paradoxalmente sentia-se cada vez mais viva.



Saindo do hospital ela pegava seu carro para se dirigir à casa. Assim era o que seus colegas imaginavam, porque sua pele fervia de vida e de vontade de viver e curtir-se mais e mais era imperativa. O hábito criado por ela era justamente sair, mesmo que tivesse ficado sem dormir, e aproveitar a energia que sentia até a última gota, para depois, completamente exaurida, dormir em seu apartamento. E esperar não sonhar com o homem dos olhos velhos.


Dentro de seu carro existia um pequeno arsenal de objetos que ela lançava mão para preservar seu tesouro mais precioso: sua intimidade. Ela levava sempre perucas e mudas de roupa, que eram completados por maquiagem. Somente seus olhos azuis sondativos permaneciam inalterados.


Depois do último plantão, especialmente longo, especialmente agitado, a necessidade de viver pulsava em cada poro de sua pele e ela precisava aproveitar essa sensação sem ter de se comprometer ou se revelar. No estacionamento da boate cluber, ela colocou a peruca loira e a roupa justa e entrou.


A porta de ferro, com a pintura descascada, escondia um clube privado onde as pessoas tinham o compromisso de não comprometerem umas às outras. Não se usava o nome próprio. Cada ato ou fantasia era lacrado pelas portas negras e pela luz estroboscópica ofuscante do lugar. Lá dentro Lúcia, que já não atendia por esse nome e sim por Ray, podia mostrar as costas e a enorme tatuagem que a cobria e que terminava em uma manga colorida em cada um de seus braços.


Como médica, seu acesso à morfina, tranquilizantes, vicodin, era muito facilitado. Além de LSD, bala e outros psicotrópicos. E a sensação de quase deixar o próprio corpo, de observar tudo como uma terceira pessoa era intoxicante. Em todos os sentidos.


Enquanto esperimentava a sinestesia resultante das drogas e provava o sons altos, ferindo os ouvidos, que dançavam em harmonia com os raios de luzes coloridas, ácidas, que cegavam ao mesmo tempo que faziam a retina enxergar novas cores, a conhecida sensação de ser observada lhe queimou a nuca.


Ora, mas é claro que estaria sendo observada. Haviam ao menos quatrocentas pessoas em um espaço pequeno, impossível que não houvesse uma que a olhasse. No meio da pista, parou, enquanto outros esbarravam e a faziam dançar somente pelo fato de todos os corpos estarem muito juntos. Levada pela multidão, suava em profusão enquanto corria os olhos, histérica pelos rostos. Sabia que o homem dos olhos velhos estava ali.


Levantando o rosto, ela viu seus olhos no átrio acima de si. Eles pertenciam a um homem alto, com a pale alternando entre tons de azul e verde. As luzes da casa rendeando e criando padões coloridos pelo rosto. Não se podia ter certeza naquele lugar, mas ele parecia estar vestido inteiramente de preto. Ele estava olhando para ela, e só para ela. O mesmo sorriso cínico.


Hipnotizada, sem tirar os olhos do átrio, ela começou a andar em sua direção, porque sabia que ele poderia lhe dar a resposta. Porém, invariavelmente alguém dançando empurrou-a com mais força, o que fez com que se desequilibrasse. Segundos de hesitação fizeram com que a imagem do homem dos olhos velhos se perdesse.


Lúcia ficou ainda por algum tempo no meio da pista de dança sendo empurrada por outros dancarinos suados em seus delírios solitários, imaginando se teria realmente visto o homem ou se era efeito da cocaína, das luzes e da sua imaginação cansada.

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